Deveres de uma geração sem direitos

DEVERES DE UMA GERAÇÃO SEM DIREITOS – RIO 1955

Discurso do acadêmico Ricardo-Cesar Pereira Lira, orador oficial da “Turma Evaristo de Moraes”; na sessão solene de colação de grau dos bacharéis de 1955, da Faculdade de Direito da Universidade do Distrito Federal, pronunciado no Teatro Municipal, 19 de dezembro de 1955.

SUMÁRIO:

Deveres do advogado. Deveres do Juiz. Os Juristas e o novo direito privado. As instituições políticas e a realidade nacional. Excitação cívica da alma popular. Recuperação do poder civil. As forças armadas e a Constituição. Palavras finais.

Exmo. Sr. Ministro Luiz Galloti, Presidente do Tribunal Superior Eleitoral;

Exmo. Sr. Representante do Ministro da Justiça;

Exmo. Sr. Representante do Ministro da Fazenda;

Exmo. Sr. Representante do Ministro da Educação e Cultura;

Senhor Diretor da Faculdade de Direito da Universidade do Distrito Federal e Prezado Paraninfo Professor Ary de Azevedo Franco;

Marechal Eurico Gaspar Dutra;

Senhores Professores;

Minhas Senhoras;

Meus Senhores;

BACHARÉIS de 1955:

A magnificência desta solenidade,analisados aos nossos comuns sentimentos, culmina expressivamente na singeleza dramática de um “ADEUS”.

Afasta-nos o Destino, Mestres e companheiros!

Mas é uma despedida com demonstrações de aplauso, de alegria e de festa.

Já experimentamos, de outras vezes, as despedidas de dor, sofridas e choradas. Quando se alonjou dos Efésios, Paulo de Tarzo comoveu a todos num choro desenganado, sem haver um só que pudesse reprimir as lágrimas!!! A São Paulo, avistá-lo-iam os discípulos pela última vez!!!

Em nosso “adeus” não cabe o desafogo desse pranto.

Encerrada a última ceia com os apóstolos, e anunciado que se partia do mundo, Jesus estranhou vê-los tristes no rosto e no coração:

“Vejo-vos tristes, e nenhum de vós me pergunta para onde vou. Se vos entristece o porque me vou, perguntai-me: “quo vadis?”, e logo vos alegrareis.

Daí, as lágrimas que não choramos!

Daí, a festa que celebramos!

É que hoje entraremos a militar no vosso sacerdócio. Pelo juramento que vamos professar, ingressaremos como advogados magistrados ou juristas, no mais elevado dos ministérios:o da Paz e o da Justiça Social:

SE ADVOGADOS

Amparemos os desvalidos e os inermes;

Advoguemos os poderosos, na medida do seu direito;

Profliguemos a violência e a corrupção forense;

Tenhamos como patrono a LEI;

Pleiteemos, além da lei, em busca da Justiça, mas sempre através da lei.

Não esqueçamos a intrepidez de um Lachaud, na causa do monstruoso Troppmann, levantando, entre o culpado e os ardores da multidão enfurecida, a sombra tutelar do DIREITO DE DEFESA, reclamada pelos foros de civilização do povo francês:

“A lei é calma, senhores; a verdade não será possível achá-la, senão procurada juntamente pela acusação e pela defesa. Eu vo-lo exoro, impondo silêncio às vossas consciências. Tende essa coragem, e esperai!!!”

E ainda recordemos a bravura de um  Berryer, ao traçar com o vigor da sua coragem pessoal, o exórdio da defesa de Luiz XVI:

“Trago à Convenção a verdade e a minha cabeça. Disponde de uma, depois de ter executado a outra!!!”

Ai estão os nosso mandamentos; as exigências da nossa vocação.

Por isso compreendemos o genial Voltaire, em um de seus transbordamentos:

“Eu gostaria de ter sido advogado:

Este é o mais belo estado do mundo!”

SE JUÍZES amanhã, alçaremos a Justiça a uma altura inaccessível aos poderosos do dia, e, ao mesmo passo, surda os clamores da paixão pública.

E, sobretudo, não seremos daquela minoria, que macula o templo da Justiça, fazendo de seu lavor mercatura ignóbil, a negociar sentenças de preço fixo! Realidade contristadora, que sempre amargura confessar!

TÊMIS! Nós o juramos, sob a fé do grau que nos aguarda: Das nossas penas não fluirão sentenças que enodoem o teu gládio, desequilibrem a tua balança, e ameacem os teus fundamentos.

Não conspurcaremos a pureza de nossas leis, como Anás e Caifás prevaricaram sobre a santidade das leis mosaicas! Não nos conluiaremos nas madrugadas, para ensaiar as assentadas públicas, como fez o sinedrim para aconselhar a execução do Cristo! Não! Não desertaremos da Justiça, como o fizeram Herodes e Pilatos!

Nossa toga não abrigará a cobardia ou a paixão, o medo ou a cobiça, a pulsilanimidade ou a subserviência! PREVARICAÇÃO JUDICIÁRIA! Não deitarás nas dobras das nossas vestes talares o alimento nefando da tua ceva !!!

*   *   *

São testemunhos da nossa compenetração os homenageados de hoje, nesta sessão solene da Douta Congregação, que, na coerência de seus exemplos, nos ensinaram a amar os princípios a que agora nos vinculamos, para todo o sempre.

EVARISTO DE MORAES, – o nosso Patrono -, é a síntese perfeita do advogado e a do jurista.

O sofrimento e a miséria das classes oprimidas confrangeram a sua índole cristã, e fizeram dele, ao lado de outros, um dos pioneiros do nosso direito social.

Um enamorado do Direito, uma voz constante e nunca omissa na tribuna de defesa, o orador eloquente, com a elegância da frase, a precisão dos conceitos, a bravura dos crentes, EVARISTO nasceu para nosso PATRONO. Contra tudo, contra todos, contra as próprias convicções ideológicas, ele jamais se omitiu no cumprimento dos deveres, jamais cedeu aos desígnios da superexcitação coletiva ocasional, – drama dos criminalistas célebres. Prova-o a causa Mendes Tavares, um partidário extremado da corrente hermista, contra a qual Evaristo infenso às imposições militaristas , opusera o seu talento peregrino! E Evaristo de Moraes não negou o concurso da sua inigualável eficiência profissional ao adversário de ontem. E a efígie do “eterno advogado”, recebe em nossas praças públicas, a aragem mansa da natureza, como uma homenagem popular ao brilho de sua inteligência, significando que o povo não deseja réus indefesos. O monólogo da acusação é o dealbar funesto das arremetidas liberticidas!

O Desembargador Ary de Azevedo Franco, – Paraninfo da “Turma Evaristo de Moraes” – é um temperamento dinâmico, aberto às solicitações da Justiça, constante no desassombro, imagem fiel do mestre, que, como juiz, não desnatura os princípios enunciados da eminência da Cátedra!

Como professor, – severo e justo no julgamento dos trabalhos universitários, ressaltam ainda no seu perfila devoção à nossa Faculdade, e o seu prazer de estar e viver entre os seus discípulos.

O professor Osmar da Cunha – Homenageado Especial – é para nós o paradigma do espírito universitário, e a prova lhe oferecemos nas demonstrações constantes de carinho e simpatia. E é o advogado militante, castigado nas canseiras do Forum: chegou ao destino que desejamos. Homenageando a Oscar da Cunha, o amigo, – rendemos preito as nossas próprias ilusões!

E a homenagem se estende a todo Corpo Docente, honra e orgulho da “Turma Evaristo de Moraes”, que manifesta igualmente os seus agradecimentos ao zeloso Corpo de Funcionários da Faculdade, e a Uri Zwerling, advertência diária de que a bondade conquista, e a amizade avassala.

*   *   *

QUERIDOS MESTRES,

Confiai em nós! Sabeis que bem longe vão as responsabilidades do sacerdócio em que hoje nos iniciais.

Vivemos um século de sensação, pejado de surpresas históricas , repleto de desajustamentos ideológicos, prenhe de inovações desconcertantes! Verdades consagradas esboroam-se ao encontro de novas verdades, que despontam no fastígio das correntes renovadoras, na crista das ondas reformistas!

Já no começo do século, o Código Napoleão havia recebido o impacto de nada menos que 96 leis esparsas, a quebrar-lhe a harmonia.

O nosso Código se vai retalhando pela foice do tempo. Numerosos institutos estão hoje sob o domínio de leis especiais, impostas pelo espoucar de novas circunstâncias econômicas.

É que galgamos uma ponte de transição, destinada a ligar ao Passado as avenidas do Futuro!!!

Atrás de nós há um mundo superado pela angústia e a esfinge do nosso tempo é o admirável Mundo Novo.

A realidade subjacente conflita com a subestrutura ideológica, que não mais corresponde às condições vigentes da sociedade. Há uma insurreição dos fatos contra os códigos, mas a nova ordem ainda não se exterioriza em novas fórmulas e novos conceitos. Ela aparece camuflada, por uma série de presunções, que não constituem senão ficções destinadas a respeitar na aparência, mas não na realidade, a sistemática legislativa pré-existente. Desse modo, diz Orlando Gomes, a técnica jurídica se transforma na “apoteose do subterfúgio”.

A atividade doutrinária, portanto, cabe a tarefa de reajustamento dos conceitos da nova realidade. Esta, a grande missão dos juristas hodiernos, em que, Mestres, estais nobremente empenhados. Nobremente, porque ela responde aos reclamos da justiça social. Nobremente, porque ela procura compensar com a superioridade jurídica a inferioridade econômica dos pobres e deserdados.

E nós, que alvorecemos para a ciência jurídica, aproveitaremos a madrugada que nos envolve, recolhendo as novas brisas que sopram, para amenizar a soalheira do dia de amanhã.

– MEUS SENHORES

Não está completa a tábua de nossos deveres, embora já longa e pesada. Temos dívidas para com as nossas instituições políticas, tão castigadas através dos acidentados lustros em que se prolonga a nossa emancipação.

Os nossos publicistas, nos seus estudos da Ciência Política, se vem perdendo, na esterilidade do método legístico. Ainda não logrou, entre nós, a merecida repercussão o estudo objetivo do comportamento dos indivíduos , dos seus usos, costumes e tradições, enfim dos seus traços culturais, dentro da orientação metodológica moderna, voltada para os fatos, e debruçada sobre o campo dos grupos sociais. Ou se a teve, ainda não conseguiu vencer o encantamento dos nossos homens públicos, fascinados pelas construções d’alem mar e americanos do norte, e esquecidos da triste mas irrefragável realidade pátria.

A enxertia legislativa, ou a importação maciça em bloco, de sistemas constitucionais quase por inteiro, – tudo vem concorrendo como concausa, para a dissonância entre o direito-lei e direito-costume.

Eça de Queiroz escreveu estas linhas de sisudez:

“Os que sabem dar a verdade à sua pátria, não a adulam, não a iludem; não lhe dizem que é grande porque tomou Calicut; dizem-lha que é pequena porque não tem escolas. Gritam-lhe: Tu és pobre, trabalha! Tu és ignorante, estuda! Tu és fraca, arma-te!”

Reconheçamos, igualmente, que o nosso povo-massa apresenta traços culturais bastante rudimentares. É o nosso um homem apartado da comunidade; é um homem desmolecularizado; é um homem desimpregnado do sentido social.

“Onde há abelhas de sol, luz, cor, perfume, vida dionisíaca em escachôo permanente”, ele “é o sombrio urupê de pau podre, a modorrar silencioso no recesso das grotas”. É o homem que assistiu ao 7 de setembro, ao 13 de maio, ao 15 de novembro, de cócoras…Enfim, o povo-massa é o personagem de Monteiro Lobato, que cisma à porta da cabana…

Fere-nos a rudeza das palavras. Contunde-nos o rigor das imagens. Precisamos, todavia, reconhecer a veracidade do quadro.

Está proclamado felizmente o caráter unilateral do panculturalismo. Perderam a sua posição dita científica, as “culturas” tomadas como transcendências, e a dinâmica da vida social somente pode ser compreendida na base da reação do indivíduo à cultura dentro na qual vive, e se agita.

Devemos, portanto, olhar objetivamente para os fatos. Precisamos dar ao povo escolas de democracia. Incentivar os organismos que arranquem o povo desse estado de desmolecularização, imprimindo-lhe o sentido da vida social, da vida em comum, pela cooperação mútua e franca.

Incumbe-nos a excitação cívica da alma popular!

Mas para tanto, antes de tudo e acima de tudo, ensinemos com o exemplo.

Como politizar o povo, se a cada passo lhe destruímos a esperança que nasce?  Como elevá-lo ao amor das instituições, se o temos condenado à descrença, ao ceticismo, ao elogio do caos?

O povo cansar-se-á das mentiras, se não renegarmos o passado e insistirmos em privá-lo da verdade que lhe prometemos nas leis!

É preciso que cessem as interpretações deformantes e teratológicas!

Basta de sofismas! A hermenêutica desvairada da regras constitucional tem justificado, através dos tempos, a iniciativa, a precedência das forças armadas na presumida garantia dos poderes constituídos, da lei e da ordem. Essa adulteração dos textos tem insuflado a violência e animado o arbítrio! Ou confessamos a nossa incapacidade de viver democraticamente, ou começamos, agora e urgentemente, a tarefa sagrada da revitalização dos poderes governamentais!

É mister, sobretudo, tratar da recuperação do poder civil. Dar às nossas crises altas soluções políticas! Encontrar a defesa da Constituição dentro da própria Constituição! Resolver os conflitos constitucionais pelo desassombro das tribunas e pela coragem das togas, e não pela incontinência, pelo fragor e pela indisciplina das armas!

“A força armada”, e quem diz é Ruy, “não é o supremo tribunal da legalidade.” Fosse verdadeira essa doutrina e estaria deslocado o eixo da Republica.

O direito público, em suas elaborações doutrinárias – é certo – reconhece excepcionalmente o “direito da  revolução”. Todavia, os recursos violentos e extra-legais, pelos riscos da deformação das suas finalidades, pelos perigos de consequências muito piores que o mal que desejam debelar, só se legitimam quando perde, de todo, a esperança das reformas legais contra as opressões.

E não há que confundir o direito de revolução, com insurreições de minorias ou quarteladas, tristes testemunhos de vocações desmentidas, oferecidos pelas sombrias horas da atualidade.

Não! A chamada resistência ativa do povo não se pode processar por grupos isolados, se não por um movimento geral, com foro de unanimidade, partido dos que escolhem os governantes.

Preservemos o Estado do Direito. Repilamos as situações de fato, que aniquilam as instituições e desiludem o já escasso sentimento cívico popular.

A contensão dos poderes nos limites constitucionais, desde que claudicante o sistema de freios e contra-pesos, efetivar-se-á, embora a longo prazo, pela pressão, pelo destemor, pela coragem da opinião pública organizada. Ela substitui um judiciário tardio e timorato, um legislativo submisso e inconsequente, um executivo ilegítimo e de contrafacção! Ela vence até mesmo, pela força de suas razões, a força das armas. Passada a procela das paixões, as consciências se reintegram, os espíritos se desarmam, as armas se rendem, com a vitória final da vontade popular!

Regime de opinião, a democracia tem como pressuposto a opinião pública organizada. Este, este é o vácuo que está aberto na vida pública brasileira!!!

“O poder”, diz Hermes Lima, “movendo-se nesse espaço vazio, tende naturalmente a abusar das suas prerrogativas. Não sente a pressão vinda de fora para dentro, da comunidade sobre a direção da coisa pública”. A opinião não condiciona a conduta governamental.

A sua organização é tarefa básica dos partidos. Os partidos são evangelização, sacrifício, luta, ideal dos nossos homens públicos, e neles devemos integrar o povo, preparando-o, ministrando-lhe os elementos, para uma participação efetiva na cousa pública.

Este, como cidadãos , o nosso compromisso: Evangelistas de um velho credo, para perenidade das instituições e tranquilidade da família brasileira!!!

*   *   *

Estes são os nossos deveres. Estas as nossas responsabilidades. Responsabilidades que se não dividem, porquê todas elas pertencem a todos nós.

O encontro de duas gerações não é um ajuste de contas, mas um revigoramento de laços, um engrossamento de falanges para a batalha ingente da redenção nacional.

Redenção ampla, por nacionalismo econômico! Redenção ampla, por nacionalismo político! Redenção ampla, por um nacionalismo cultural! Todos imunes às pressões econômicas, ideológicas e intelectuais!!! Nacionalismo inteligente que não descambe para a xenofobia!

Estas são as nossas promessas. as nossas esperanças. Entregamo-las à nossa Pátria na hora da nossa colação de grau.

*   *   *

Somos os lavradores, que nos expomos ao sol, à chuva, e aos ventos, espargindo as sementes da messe dourada: A JUSTIÇA É A COLHEITA DOS POVOS!!!

Somos os artesãos que, pelas madrugadas, na sua faina diária, esperamos ganhar o sustento de cada dia: A JUSTIÇA É O PÃO DOS POVOS!!!

Somos os soldados e os homens do mar, que, depois das batalhas e dos oceanos, esperamos a glória e o descanso que nos ampare na senectude: A JUSTIÇA É O DESCANSO E A GLÓRIA DOS POVOS!!!

A messe, o pão, o descanso e a glória desta imagem de Lamenais, – o povo brasileiro os terá, na medida do esforço de suas elites.

*   *   *

Os Bacharéis de 1955, com emoção e firmeza, prometemos saldar o quinhão que nos toca na luta pela recuperação da nossa Pátria.

E o Brasil vencerá!…

3 pensou em “Deveres de uma geração sem direitos

  1. O discurso Deveres de uma Geração sem Direito foi proferido no momento em que o País estava em estado de sítio e foi um verberação contra a chamada Novembrada, quando o General Lott deu um golpe militar, mantendo em cárcere privado o Vice-Presidente Café Filho e o Presidente da Câmara Carlos Luz. Discutia-se politicamente a
    posse do Presidente eleito JK. Realmente o General Lott em nome da Forças Armadas garantiu essa posse. Mas não havia garantia institucional de que isso acontecesse. O jovem acadêmico Ricardo Pereira Lira, então com 22 anos, em nome da sua turma de bacharéis, no seu discurso, sustentou que a questão devia ser decidida pelo Supremo Tribunal. Foi freneticamente aplaudido pela platéia presente no Teatro Municipal no Rio de Janeiro e so não foi preso em razão da interferência do Marechal Eurico Dutra, ex-Presidente da Republica, presente na solenidade.

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *